24/06/2025

Vinculação dos administradores ao acordo de acionistas e os deveres fiduciários

A princípio, a questão que se coloca neste breve texto, sobretudo, é simples e (relativamente) antiga: a vinculação dos conselheiros indicados por acionistas membros do bloco de controle ao acordo de acionistas. Sem consenso, doutrina e jurisprudência propõem distintas interpretações e soluções.

Logo, do ponto de vista estritamente normativo, a Lei n. 13.303/2001, que introduziu os §§ 8o e 9o no art. 118 da Lei n. 6.404/76 (LSA) veio para, em tese, elucidar o tema e estabelecer que o acordo de acionistas vincula os administradores.[1]

O §8º do art. 118 da LSA confere força aos acordos de acionistas, na medida em que “o voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado” não deve ser computado. Ainda que haja clareza do comando legal, a LSA deve ser interpretada sistematicamente, para compatibilizar seus diferentes institutos, preceitos e comandos. A melhor abordagem hermenêutica sugere que a vinculação do conselheiro ao acordo de acionista não pode ser interpretada de forma literal, isolada e absoluta (a análise sistemática – e compatibilizadora -, ainda que breve, é o que se fará a seguir).

Legislação societária brasileira

Importante lembrar que a legislação societária brasileira (LSA) recebeu, nesse tópico em particular, importante influência do direito norte-americano (sobretudo com relação aos fiduciary duties (deveres fiduciários) dos administradores).

A LSA contém dispositivos norteadores da atuação dos administradores, que devem ser interpretados sistematicamente e em conjunto com o citado art. 118 e seus parágrafos. Dessa forma, entre estes dispositivos, destacam-se os deveres de independência, de proteção ao interesse social, de diligência e de lealdade previstos no art. 154 e seu §1º. Em síntese, o administrador deve observar o melhor interesse da companhia. Essa é a disposição literal da norma e o entendimento de parte significativa da doutrina nacional.[2]

Uma vez delimitada a necessidade de atuação do administrador sempre em linha com o melhor interesse da companhia, em atenção e obediência aos fiduciary duties, há que se cotejar esta imposição com a previsão do citado §8º do art. 118 da LSA.

A melhor doutrina acerca da compatibilização dos deveres fiduciários dos membros do Conselho de Administração e sua vinculação ao acordo de acionistas apresenta duas vertentes principais. Em que pese o disposto no §8o do art. 118 da LSA, há estudiosos contrários à vinculação dos administradores ao acordo de acionistas. Contudo, de outro lado, há aqueles que advogam a mandatória vinculação dos administradores ao acordo de acionistas.

Defensores do acordo de acionistas vinculante

Entre os que defendem o acordo de acionistas vinculante, é importante destacar uma divisão. Há os doutrinadores que entendem uma vinculação genérica do administrador ao acordo de acionista, por força da redação do art. 118 da LSA (introduzida pela Lei n. 10.303/01). Mais moderada, outra vertente defende que a vinculação seria relativa, isto é, deve-se levar em conta o interesse social, entre outros fatores.

A corrente doutrinária que entende pela impossibilidade de vinculação dos administradores ao acordo de acionistas tem como maior expoente o IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, que defende a necessidade de harmonização dos §§ 8o e 9o do art. 118 da LSA às melhores práticas de governança corporativa, de modo a assegurar a independência do Conselho de Administração da companhia.

Em sentido distinto do posicionamento defendido pelo IBGC, há importantes autores para os quais não haveria incompatibilidade entre a vinculação ao acordo de acionistas e o dever de independência determinado no art. 154 da LSA.

Qual o argumento de defesa dessa posição?

Em síntese, a defesa dessa posição funda-se no argumento de que, nos termos previstos nos §§ 8o e 9o do art. 118 da LSA, a vinculação (prevalência) do acordo de acionistas – que por si só deve promover o interesse social –, oferece maior segurança jurídica às relações jurídico-societárias.[3]

Esta corrente doutrinária não especifica contornos à vinculação dos administradores ao acordo de acionistas, embora considere tal vinculação genérica (e não absoluta, portanto). Em última análise, seus defensores entendem que o acordo de acionistas já deve obrigatoriamente contemplar o melhor interesse da companhia e, assim, a vinculação dos administradores não representaria quebra ou desrespeito de deveres fiduciários ou comprometimento do interesse social, conforme estabelecido na LSA.

Porém, a doutrina nacional majoritária é pela ponderação entre a vinculação do conselheiro ao acordo de acionistas e os deveres fiduciários dos membros do Conselho de Administração, mitigando tal vínculo. Essa interpretação, aliás, parece estar em consonância com o previsto no direito norte-americano, especialmente quanto aos fiduciary duties mancionados anteriormente.

Quem defende a vinculação?

Defendem a vinculação relativa dos administradores a acordo de acionistas nomes de destaque no Direito Societário, como Alfredo Lamy Filho, José Luiz Bulhões Pedreira, Haroldo Malheiros Dulcrec Verçosa, Fábio Konder Comparato, Modesto Carvalhosa, Calixto Salomão Filho, Erasmo Valladão, Eduardo Munhoz, Arnold Wald, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, Denise Salles e Marcelo Vieira Von Adamek, entre outros.

Além da doutrina que vem se posicionando acerca do tema, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) também tem externado seu entendimento no sentido de que a vinculação do conselheiro ao acordo de acionistas não pode ser absoluta e se sobrepor aos deveres fiduciários.[4]

Logo, na esfera administrativa a CVM se tem posicionado claramente no sentido de compatibilizar o acordo de acionistas e os fiduciary duties. A jurisprudência administrativa referendou a possibilidade de vinculação relativa (e tão somente relativa) dos administradores ao acordo de acionistas.

No âmbito judicial os precedentes são escassos, embora existam algumas decisões emblemáticas, especialmente aquelas proferidas após a introdução dos §§ 8o e 9o no art. 118 da LSA pela Lei n. 13.303/2001[5], que claramente apontam no sentido de que o acordo de acionistas deve, como regra, ser observado.

Assim, como demonstrado, não há consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca da melhor interpretação do disposto no §8o do art. 118 vis-à-vis com os demais dispositivos da LSA.

O que é necessário para garantir eficácia à vinculação do acordo de acionistas?

Entretanto, pela análise da corrente doutrinária mais sólida, conjugada com as decisões administrativas proferidas pela CVM, além da melhor abordagem hermenêutica, parece necessária uma leitura compatibilizadora da LSA, no sentido de garantir eficácia à vinculação do acordo de acionistas (§8o do art. 118) sem, todavia, deixar de lado a necessidade de se observar os deveres fiduciários (§1o do art. 145). Dito de outra forma, a vinculação deve ser limitada pela necessidade de respeito à própria LSA – o que decorre de sua interpretação sistemática.

Do ponto de vista prático, o membro do Conselho de Administração deve votar sem jamais afastar-se do melhor interesse da companhia. Deve votar de maneira fundamentada e com base suas convicções.

O que acontece em caso de conflito?

O acordo de acionistas (e a orientação de voto), se existente e está devidamente arquivado (art. 118 LSA), deve ser respeitado e observado pelo administrador. Porém, a vinculação do administrador ao acordo deve passar antes pelo escrutínio de sua consciência e pela análise cuidadosa de seus deveres fiduciários. Em caso de conflito, prevalecem a consciência e os fiduciary duties (os administradores devem ter em mente que sua responsabilidade transcende a companhia e os próprios acionistas, pois também afeta empregados, clientes, o público em geral e, claro, a comunidade na qual estão inseridos).

Esta é a forma de se alcançar o melhor interesse da companhia, a independência do Conselho de Administração e as melhores práticas de governança corporativa.


[1] Art. 118. Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede.(Redação dada pela Lei nº 10.303, de 2001)

[…]

  • § 8o O presidente da assembleia ou do órgão colegiado de deliberação da companhia não computará o voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
  • § 9o O não comparecimento à assembleia ou às reuniões dos órgãos de administração da companhia, bem como as abstenções de voto de qualquer parte de acordo de acionistas ou de membros do conselho de administração eleitos nos termos de acordo de acionistas, assegura à parte prejudicada o direito de votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do conselho de administração, pelo conselheiro eleito com os votos da parte prejudicada.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)

 

[2] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. v. 2. 2a ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 467; VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Responsabilidade dos Administradores de S.A. e as Ações Correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 120.

[3] EIZIRIK, Nelson. Temas de Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33/35; LEÃES, Luiz Gastão de Barros. Efeitos sobre terceiros dos acordos de acionistas. In Pareceres. Vol. II. São Paulo: Singular, 2004.

[4] CVM n. RJ-2014-11126; Ofício n. 66/2016-CMV/SEP/GEA-4; Ofício n. 163/2017/CVM/SEP/GEA-4

[5] TJMG, Agravo de Instrumento-Cv 1.0024.14.246746-3/001 / 0771003-49.2014.8.13.0000 (1), 10a Câmara Cível, Rel. Des. Vicente de Oliveira Silva (vencido), pub. em 15.05.2015; TJRJ, Processo 0044716-76.2001.8.19.0001, 2a Câmara Cível, Rel. Des. Leila Maria Carrilo Cavalcante Ribeiro Mariano, pub. em 14.01.2008.


Autor: Renato Toledo da Cunha

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