04/08/2025

A responsabilidade do franqueador pelos atos do franqueado

Análise comparativa de entendimentos do STJ à luz da Lei de Franchising

O Contrato de Franquia Empresarial (CFE), disciplinado pela Lei nº 13.966/2019[1], insere-se na lógica dos contratos empresariais modernos, caracterizado pela concessão de uso de marca, transferência de know-how e padronização de operação. Em que pese a natureza tipicamente empresarial da relação, surgem conflitos envolvendo a responsabilização do franqueador por atos praticados exclusivamente pelo franqueado, especialmente em sede de demandas consumeristas.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), instância máxima da uniformização infraconstitucional no Brasil, tem se deparado com essa temática e, em julgados recentes, adotou posturas divergentes sobre os limites dessa responsabilidade. Este artigo propõe-se a analisar, sob o viés técnico-jurídico do Direito das Franquias, dois importantes precedentes do STJ, expondo suas premissas dogmáticas distintas, os impactos sistêmicos para o setor de franquias e os possíveis caminhos para uma interpretação coerente e previsível do instituto.

A estrutura jurídica da franquia empresarial

O CFE configura-se como uma avença empresarial complexa e de natureza atípica, na qual o franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente e o transfere métodos de operação, com ou sem exclusividade territorial, mediante remuneração (royalties, taxas de franquia, entre outros) [2].

Embora o franqueado mantenha autonomia jurídica e econômica, o contrato de franquia impõe obrigações de padronização e vinculação à identidade estrutural e institucional do franqueador, o que frequentemente induz o consumidor a não distinguir claramente as esferas de atuação – e as diferenças – entre as duas figuras. Essa ambiguidade operacional é o que justifica, muitas vezes, a discussão sobre eventual responsabilidade solidária em sede consumerista [3].

A responsabilidade do franqueador nas relações de consumo

A legislação consumerista brasileira, especialmente o art. 7º, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), estabelece a possibilidade de responsabilidade solidária entre todos os integrantes da cadeia de fornecimento. Contudo, o debate ganha complexidade no contexto das franquias, uma vez que o franqueador não é fornecedor direto no caso concreto, mas atua como organizador sistêmico da rede.

Isso porque a legislação é expressa ao afastar vínculos de subordinação:

“O contrato de franquia não caracteriza relação de consumo nem vínculo empregatício entre franqueador e franqueado ou entre este e os empregados daquele” (art. 1º, §1º, da Lei nº 13.966/2019).

Apesar disso, quando se trata da responsabilidade perante o consumidor final, a análise se desloca do plano obrigacional para o plano da aparência e do risco do empreendimento, o que justifica a aplicação da legislação consumerista, inclusive no que tange à responsabilidade solidária.

Assim, a questão que se impõe é: até que ponto o franqueador pode ser responsabilizado pelos atos danosos praticados exclusivamente pelo franqueado, no exercício de sua atividade autônoma? A resposta a essa pergunta tem oscilado na jurisprudência do STJ, conforme os julgados que passamos a analisar.

O entendimento da terceira turma do STJ: REsp 1.426.578/SP

No julgamento do Recurso Especial 1.426.578/SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze [4], a Terceira Turma do STJ adotou uma interpretação ampliativa e protetiva da responsabilidade civil do franqueador. De acordo com esse entendimento:

Cabe às franqueadoras a organização da cadeia de franqueados do serviço, atraindo para si a responsabilidade solidária pelos danos decorrentes da inadequação dos serviços prestados em razão da franquia.”

A fundamentação deste julgado baseia-se na teoria da aparência, na solidariedade objetiva nas relações de consumo e na centralidade da confiança legítima como valor jurídico relevante. O franqueador, ao permitir o uso de sua marca e ao compor uma rede integrada de fornecimento, deve responder solidariamente pelos vícios e danos decorrentes da má prestação do serviço ou vícios/defeitos no fornecimento de produtos, independentemente de culpa ou de participação direta.

O precedente, portanto, aproxima-se da doutrina de integração sistêmica da responsabilidade civil, defendida por autores como Cláudia Lima Marques [5], para quem o CDC impõe uma lógica de proteção da confiança e da boa-fé objetiva, em que “quem lucra com a estrutura de fornecimento responde pelo risco que ela gera ao consumidor“.

O entendimento da quarta turma do STJ: AgInt no agravo em recurso especial nº 1.456.249

Em contraposição, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial Nº 1.456.249 – SP, a Quarta Turma do STJ, sob relatoria do Ministro Raul Araújo [6], adotou posição restritiva e contratualista, afastando a responsabilidade do franqueador nos seguintes termos:

“[…] deve ser afastada a responsabilidade solidária da franqueadora […], uma vez que, sob a ótica do contrato de franquia, mostra-se de todo desarrazoado reputar o serviço de transporte escolar contratado exclusivamente pela franqueada para transporte dos alunos como vinculado à atividade da franquia de metodologia de ensino.”

Nesse julgado, observa-se uma ênfase na autonomia negocial do franqueado e na limitação objetiva do escopo contratual. Para a Quarta Turma, a franquia não gera presunção absoluta de solidariedade, sendo necessário demonstrar nexo funcional entre o ato lesivo e o objeto da franquia. Isto é, o franqueador somente responde de forma solidária com o franqueado pelos danos decorrentes dos serviços prestados em razão da franquia.

A decisão adota, assim, uma perspectiva de interpretação estrita do contrato de franquia, conferindo maior segurança jurídica ao franqueador e reconhecendo a independência operacional e civil do franqueado, como previsto expressamente no art. 1º, §1º, da Lei nº 13.966/2019.

Análise crítica e consequências sistêmicas

A divergência entre as Turmas do STJ revela duas visões distintas sobre o papel do franqueador: de um lado, uma concepção sistêmica e relacional, que o vincula diretamente à cadeia de fornecimento; de outro, uma abordagem contratualista e individualista, que o exime de obrigações alheias ao CFE.

Ambas as posições possuem fundamentos legítimos, mas seus efeitos práticos são distintos:

  • a tese da Terceira Turma do STJ protege o consumidor. Se, por um lado, induz o franqueador a controlar com mais rigor sua rede, por outro lado gera insegurança jurídica e aumento de litigiosidade, sobretudo em redes de franquia com grande capilaridade.
  • a tese da Quarta Turma reforça a segurança jurídica dos contratos empresariais e respeita a autonomia das partes, mas pode deixar o consumidor desamparado diante da insolvência do franqueado, prejudicando a efetividade da tutela consumerista.

O impacto prático dessa divergência é relevante: franqueadores passam a ser alvos frequentes de ações judiciais em que não possuem qualquer ingerência sobre o fato, enquanto consumidores, por sua vez, enfrentam dificuldades em obter ressarcimento de franqueados economicamente insolventes.

Há, portanto, um desequilíbrio entre os princípios da confiança do consumidor e da livre iniciativa, que ainda carece de uniformização jurisprudencial.

Conclusão

A jurisprudência do STJ ainda não consolidou entendimento unívoco sobre a extensão da responsabilidade do franqueador por atos do franqueado. Diante da relevância econômica e social da franchising no Brasil, urge um posicionamento mais claro – quiçá por meio de afetação de tema repetitivo – para harmonizar os princípios do Direito das Franquias, do Direito Contratual e do Direito do Consumidor.

Enquanto isso não ocorre, recomenda-se às franqueadoras uma atuação proativa na gestão de riscos, mediante:

  • reforço da cláusula de limitação de responsabilidade;
  • clareza no escopo do contrato de franquia;
  • rreinamento contínuo dos franqueados;
  • política de compliance e supervisão operacional efetiva.

A franquia, enquanto modelo jurídico híbrido, exige constante equilíbrio entre padronização e autonomia, marca e operação, sistema e contrato. A jurisprudência deve, pois, refletir essa complexidade, oferecendo previsibilidade sem comprometer a tutela dos direitos fundamentais do consumidor.


Referências

  1. BRASIL. Lei nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o sistema de franquia empresarial. Diário Oficial da União, Brasília, 27 dez. 2019.
  2. MAMEDE, Gladston. Franquia empresarial. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 204-208.
  3. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Método, 2020, p. 252.
  4. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.426.578/SP. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma. Julgado em 23 jun. 2015. DJe 22 set. 2015.
  5. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 485-487.
  6. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.456.249 – SP (2019/0047763-2). Rel. Min. RAUL ARAÚJO. Quarta Turma. Julgado em 07 jun. 2022. DJe 20 jun. 2022.

Autor: Eduardo Marinho Kossoski Felix 

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